Sexta-feira Santa

Todos os cristãos, nesta semana santa, agem contra ou mais do que é costume: praticam a piedade, apresentam-se com modéstia, mostram sinais de humildade, vestem-se com seriedade; desta forma querem estar unidos com o Cristo sofredor.

Haverá alguém tão pouco religioso que permaneça insensível? Ou tão insolente que não se humilha? Tão rancoroso que não perdoa? Quem gosta tanto de prazeres que não se abstém deles? Quem é tão dissoluto que não se modera? Quem é tão perverso que, nestes dias, não se arrependa? Vivemos a paixão do Senhor, que hoje abala a terra, quebra as rochas, abre os túmulos. E é iminente também a Ressurreição na qual celebrais a grande solenidade do Altíssimo Senhor. Que a agudeza e o empenho do vosso espírito vos faça compreender as sublimes maravilhas que Ele fez!

Nada poderia ser melhor compreendido no mundo do que o que o Senhor fez nestes dias, mais do que recomendado ao mundo é celebrar perpetuamente todos os anos o seu memorial com avidez espiritual e saboreando a memória da sua imensa bondade. Tudo foi feito por nós, e daí nos vêm os frutos da salvação e a vida do espírito. Que admirável, Senhor, é a tua paixão. Ela libertou-nos de todas as nossas paixões, apaziguou toda a nossa maldade, e nunca é ineficaz perante as nossas misérias. Haverá um veneno mortal que não desapareça com a sua morte? Irmãos, nesta Paixão, portanto, convém considerar três coisas em particular: a ação, o modo, e o motivo. Na Acão manifesta-se a paciência, no modo a humildade e o amor no motivo. A sua paciência é ímpar. Os iníquos abrem longos sulcos nas suas costas . Penduram-no dum madeiro e todos os seus ossos podem ser contados. Trespassam por todos os lados o muro inexpugnável que protege Israel. Perfuram as suas mãos e os seus pés. E ele, como um cordeiro levado ao matadouro, como uma ovelha ante o tosquiador, não abre a sua boca. Não murmurou contra o Pai, de quem foi enviado. Não murmurou contra a humanidade, pela qual pagou o que não tinha roubado. Nem sequer daquele povo predileto, de quem Ele recebeu tanto mal em troca de tanto bem.

[…] Se observardes como Ele o fez, vê-lo-eis manso e humilde de coração. Humilharam-no, negando-lhe todo o direito. Acusaram-no de blasfémia e de falsos crimes, e ele não respondeu. Vimo-lo totalmente desfigurado. Longe de ser o mais belo dos homens, ele era o rejeitado do povo, como um leproso; o último do mundo, o homem de tristeza, o ferido e humilhado de Deus. Faltava-lhe todo o encanto e beleza. Sim, o mais insignificante e o mais importante, o humilde e o sublime, o desprezado dos homens e o orgulho dos anjos! Ninguém tão sublime ou tão humilde como ele. Cuspiram-lhe na cara, encheram-no de opróbrios, condenaram-no a uma morte ignominiosa, e ele foi tomado por um malfeitor.

[…] A sua paciência é singular, a sua humildade é admirável. Ambas quebram todos os modelos. Mas o que faz com que ambos sejam mais estimáveis está na sua própria causa, ou seja, a caridade. De facto, devido ao extremo amor de Deus por nós, o Pai não poupou o seu próprio Filho, nem o Filho poupou nada para resgatar o servo. Sim, é extremo, porque transborda todas as medidas, ignora os limites e passa por cima de tudo. A Escritura diz: “Ninguém tem um amor maior do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos”. Mas o teu, ó Senhor, era ainda maior: deste-o pelos teus inimigos”. Pois ainda éramos pecadores, e pela tua morte reconciliaste-nos contigo e com o Pai. Existe, alguma vez existiu, ou existirá alguma vez, tal amor como este? É difícil para qualquer pessoa dar a sua vida por uma pessoa inocente. Tu, por outro lado, sofreste pelos culpados e morreste pelos nossos crimes; vieste justificar gratuitamente os pecadores, converter escravos em irmãos, cativos em co-herdeiros, e exilados em reis. O que mais realça esta paciência e humildade é que Ele expôs a sua vida à morte, suportou o pecado de muitos, e intercedeu pelos pecadores, para que estes não perecessem. O mais certo e credível é o seguinte: Ele ofereceu-se a si mesmo porque o quis. Cabia apenas a ele dar a sua vida; ninguém lha tirou. É por isso que, depois de beber o vinagre, ele disse: Tudo está consumado. Não há mais nada a fazer: Posso ir.

E inclinou a sua cabeça, obediente até à morte, e entregou seu espírito. Será que alguém é capaz de adormecer tão facilmente, quando quer? Morrer é a nossa grande debilidade. Mas morrer desta forma é de uma força incalculável. Pois a fraqueza de Deus é mais poderosa do que os homens.

[…] O único que deu a sua vida ao morrer foi aquele que a vida recuperou por si próprio. Somente pode entregá-la aquele que pode voltar a retomá-la com toda a liberdade, por ser o dono da vida e da morte.

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